Review triplo de clássicos do Trapeze dos anos 1970

TRAPEZE – “TRAPEZE” (1970)

Embora hoje em dia seja mais celebrado como o trio de hard rock funkeado que logo se tornaria, no seu primeiro ano e meio de existência o Trapeze foi um quinteto cuja sonoridade incorporava vasta gama de influências que ia do pop ao prog, passando até pelo folk.

O ano era 1968. Tony Perry, então diretor da agência de entretenimento britânica Astra resolve juntar os membros da banda Finders Keepers – Glenn Hughes (baixo e vocais), Mel Galley (guitarra e vocais) e Dave Holland (bateria) –, a qual agenciava, com a dupla Terry Rowley (teclados e flauta) e Johnny Jones (trompete e vocais) do grupo The Montanas, dando origem ao Trapeze. O nome foi ideia de Rowley, após Jones sugerir Trapezium como síntese para a sofisticação musical pretendida.

No histórico clube Lafayette de Wolverhampton, o quinteto se torna conhecido, atraindo convidados VIP como Robert Plant, John Bonham e Keith Moon a seus shows. Azeitada a máquina no palco, Perry decide que chegara a hora de descolar um contrato de gravação. Na fase dos cortejos e sondagens, o Trapeze chega a ser cotado pela CBS e pelo selo Apple, dos Beatles; o que não rolou após George Martin, célebre produtor do Fab Four, sugerir que Hughes e os outros deveriam assumir um direcionamento mais pop. Acabam assinando com a Threshold, recém-inaugurada pelos integrantes do Moody Blues.

Falando nos pioneiros do rock progressivo, foi John Lodge, seu baixista, quem abraçou a missão de produzir a estreia do Trapeze. Não obstante nunca ter produzido nenhum disco, Lodge soube conduzir os trabalhos. Obviamente, facilitou o fato de os cinco estarem muito bem-ensaiados e com cada nota do repertório na ponta da língua e dos dedos. As gravações se estenderam por cerca de duas semanas nos estúdios Morgan e Decca, ambos em Londres.

Alguns aspectos deste primeiro álbum – sobretudo se o compararmos a Medusa (1970) e You Are the Music – We’re Just the Band (1972) – chamam a atenção. O primeiro refere-se às vozes. Não são poucas as vezes em que o vocal principal fica a cargo de Jones, detentor de um tradicional registro à Ray Davies (The Kinks), e não de Hughes, já um expert em interpretação. Ainda nesse âmbito, ouvem-se harmonias de até quatro vozes em músicas como Over (na qual o fraseado do baixo projeta-se um patamar acima da mix) e Another Day.

Mas talvez o que mais destaque Trapeze de seus amplamente mais festejados sucessores seja a mistura de estilos, talvez resultado do processo de composição ao estilo “cada um por si” adotado. Sozinho, Hughes assina o pedido de desculpas em forma de balada Nancy Gray e Am I, cuja erudição forçada remete aos momentos de maior pretensão do Pink Floyd dos primórdios.

Já a dupla Jones/Galley apresenta quatro números, entre os quais se destacam It’s My Life (sustentada por um ótimo refrão), Suicide (a mesma forma de I Feel Free do Cream é usada enquanto se acena para os Beatles pós-Sgt. Pepper’s) e a suíte Fairytale / Verily Verily / Fairytale cuja letra questiona a suposta autoridade de “professores que não sabem o que ensinam” e “religiosos que não sabem pelo que rezam” antes de propor uma resistência à doutrinação.

Por fim, Rowley comparece com Wings (coassinada por Hughes e altamente influenciada pelo rock estadunidense) e Send Me No More Letters, escolhida para single embora não seja lá o momento mais inspirado. O disco termina como começa: reprisando a intro It’s Only a Dream.

Trazendo na capa uma reprodução de “A Tempestade” do pintor francês Pierre Auguste Cot e no encarte um aforismo do escritor americano Henry Van Dyke (“O tempo é demasiado devagar para os que esperam…”), Trapeze chegou às lojas em maio de 1970. Para dar um gás nas vendas e engordar o porquinho da Threshold, o Moody Blues levou o grupo para a estrada. O giro de nove datas pelo Reino Unido incluiu a primeira vez de Hughes sobre o palco do Royal Albert Hall. Mas a aclamação da crítica não repercutiu em números, tornando necessária a restruturação que tirou Rowley e Jones da jogada.

Fechando a trinca de relançamentos do Trapeze no Brasil, a presente edição fruto da coligação Classic Metal Records / Voice Music / Rock Brigade Records inclui um CD bônus com 13 faixas, incluindo nada menos que quatro versões de Send Me No More Letters, demos (incluindo Seafull, de Medusa, em estágio embrionário) e a íntegra da apresentação no programa Colour Me Pop, de 1969, responsável por despertar o interesse das gravadoras naquele quinteto oriundo das Midlands que, sem saber, trazia em sua formação o cara que logo receberia o título de “A Voz do Rock”.

 

TRAPEZE – “MEDUSA” (1970)

Como diretor de uma agência de entretenimento sediada em Wolverhampton, Inglaterra, no final dos anos 60, uma das responsabilidades de Tony Perry era cuidar de uma banda chamada Finders Keepers, composta por Glenn Hughes (baixo e vocais), Mel Galley (guitarra) e Dave Holland (bateria). Outro de seus clientes era o grupo The Montanas, que contava com a dupla John Jones (trompete e vocais) e Terry Rowley (teclados). Juntando os cinco, meio que despretensiosamente, Perry trouxe à vida o Trapeze. Depois de um único álbum, autointitulado, como quinteto, Jones e Rowley deram no pé.

Hughes, Galley e Holland mantiveram o nome, mas não a identidade musical. O Trapeze versão power trio soa muito mais pesado, com guitarras mais proeminentes e espaço extra para Glenn exibir os talentos vocais que lhe renderiam a alcunha de “A Voz do Rock” e um convite para se juntar ao Deep Purple. Mas nem tudo são mudanças: a produção novamente ficou a cargo do baixista do The Moody Blues, John Lodge.

“Uma nuvem carregada me segue aonde quer que eu vá”, brilha Hughes no refrão de Black Cloud. Produto típico da época em que foi concebida, a faixa de abertura de Medusa não faria feio num álbum do Free ou do Cream. Além da versão de estúdio, ela aparece em outras quatro versões no pacote: Stereo Edit, Mono Edit e duas ao vivo, sendo a melhor delas no Golden Hall, em Nova York, no dia 23 de março de 1971.

Na sequência, o peso de Jury, sobretudo em sua primeira parte e no solo furioso de Galley na segunda, segue à risca a cartilha do Black Sabbath. Na terceira, a música fornece a planta sobre a qual o Judas Priest construiria um dos destaques de seu catálogo nos anos 70: Dreamer Deceiver.

Um riff à Jimmy Page conduz Your Love is Alright. O clima de curtição e despojamento é tamanho que se tem a ideia de algo feito na base do improviso, com os três tocando até que o rolo de fita chegasse ao fim. Destaque para o suingue de Dave Holland na bateria, coisa da qual ele aparente abriu mão quando de sua entrada no Priest em 1980.

Letras-cabeça não estavam entre as prioridades do trio. Que o diga Touch My Life, brado hippie sobre o amor e a necessidade de ser amado com léxico limitadíssimo. Seafull por sua vez conjura imagens de um Jardim do Éden inundado ao tratar da tragédia que é um coração partido. Sobre acordes cintilantes e o baixo mais elementar do disco, Galley rouba a cena aplicando emoção soberba à cada nota do solo meio Santana meio Ritchie Blackmore.

Na reta final, Makes You Wanna Cry soa como Come Together dos Beatles caso John, Paul, George e Ringo tivessem fumado uma erva vietnamita pesada. A complementariedade das vozes de Hughes e Galley no refrão só não é mais legal que a pandeirola que surge no pano de fundo. A faixa título, provavelmente a mais famosa e importante do repertório — vide tanto a regravação feita pelo Black Country Communion em 2010 quanto o fato de ela estar entre as vinte músicas mais tocadas por Glenn em sua carreira solo —, encerra os trabalhos com pretensões de épico e novo aceno ao proto-metal do Sabbath.

Lançado originalmente em novembro de 1970, apenas cinco meses após seu antecessor, Medusa captura uma banda no ápice de seu entrosamento, e a recente edição tripla lançada no Brasil pela Classic Metal Records em parceria com Voice Music e Rock Brigade Records, repleta de cortes ao vivo nos CDs dois e três, comprova que sobre o palco os caras eram ainda mais desinibidos, chegando ao ponto de convidar John Bonham, o lendário baterista do Led, para dar uma canja. O digipak de quatro painéis inclui ainda um encarte em formato de pôster com a reprodução de um cartaz de show da época de um lado e um baita textão assinado por ninguém menos que Malcolm Dome (Record Mirror, Kerrang!, Metal Hammer, Classic Rock), jornalista sumidade nesse tal de rock and roll, do outro.

 

TRAPEZE – “YOU ARE THE MUSIC – WE’RE JUST THE BAND” (1972)

“Quando você ouve este álbum, tem dificuldade em compreender por que a banda nunca se tornou uma das maiores de sua época”, escreve Malcolm Dome no texto do encarte da edição tripla de You Are the Music – We’re Just the Band que acaba de ser lançada no Brasil pela trinca Classic Metal Records / Voice Music / Rock Brigade Records. De fato, Glenn Hughes (baixo e vocais), Mel Galley (guitarra) e Dave Holland (bateria) estavam com tudo, e o terceiro álbum do Trapeze é o atestado de um núcleo cuja coesão se deu na estrada.

Embora inglês, o trio concentrava seus esforços no mercado norte-americano, e por boa parte dos três anos que permaneceu junto, tocou de ponta a outra dos Estados Unidos, seja em clubes como o Whisky em Los Angeles, seja em anfiteatros como o Shell em Memphis, que aparece na foto da capa; curiosamente, mesmo palco em que Elvis Presley fez sua estreia, no dia 30 de julho de 1954. Do vínculo estabelecido com o público estadunidense vem o título do álbum, uma homenagem à via de mão dupla que é a relação artista-fã.

No repertório, desenvolvido a partir dos clichês do hard rock, alguns acréscimos campeões e dignos de menção, como o funk e a soul music, de onde Hughes pega emprestado o baixo groovado que lhe renderia o convite irrecusável para se juntar ao Deep Purple. Ainda que Galley e Holland fossem músicos do mais alto gabarito — vide suas trajetórias posteriores ao Trapeze, que incluem Whitesnake e Phenomena para o guitarrista e uma década de Judas Priest para o baterista —, a peça central era o “cantor extraordinariamente talentoso e, claro, um baixista destruidor”, segundo David Coverdale, cujas primeiras impressões do futuro colega foram tiradas de You Are the Music.

Keepin’ Time inicia os trabalhos com um protótipo de bumbo (ou pedal) duplo e uma simplicidade que remete à Pangeia do rock pesado. Na sequência, Coast to Coast, que Hughes regravaria com Pat Thrall no álbum Hughes/Thrall (1982), é um convite à reparação e uma declaração de amor à estrada. Mais adiante, Will Our Love End soa como uma irmã gêmea não intencional. Curiosamente, as duas baladas incluem participações especiais: B.J. Cole (steel guitar) e Rod Argent (piano) na primeira e Frank Ricotti (vibrafone) e Jimmy Hastings (saxofone) na segunda.

Em Feelin’ So Much Better Now e Loser ouve-se o registro agudo que marcaria a passagem de Hughes pelo Purple. Já What is a Woman’s Role, Way Back to the Bone — que daria nome à compilação do Trapeze lançada em 1986 — e principalmente a faixa-título servem como experimentos para a sonoridade plural de álbuns como Stormbringer (1974) e Come Taste the Band (1975). Nelas, o baixo assume a dianteira e, juntamente com uma bateria que é puro suingue — o extremo oposto do que Holland exibiria no Priest —, proporciona momentos dançantes e pesados.

Talvez o grande mérito do terceiro e derradeiro álbum do Trapeze seja a fidelidade com a qual reproduz a atmosfera da banda no palco. A título de comparação, a presente edição tripla de You Are the Music inclui dois CDs de bonus tracks nos quais verificam-se, em primeiro lugar, que independentemente do público presente, os três tocavam como que para um estádio lotado, e também como, movidos a garrafas Cold Duck, convertiam seu set em plataformas para a improvisação, estendendo as músicas em jams que são o puro êxtase roqueiro. Ah, e as duas peças finais da trajetória do grupo, as faixas Good Love e Dat’s It — lançadas originalmente na coletânea The Final Swing (1974) —, também marcam presença.

(por Marcelo Vieira)